Se tivessem sido criados perfeitos, os Espíritos não teriam mérito para desfrutar dos benefícios dessa perfeição, pois sem a luta onde estaria o mérito? Essa é a resposta dada à Kardec pela Espiritualidade amiga quando faz questionamento similar, destacando também que os Espíritos cumprem uma missão nesses diferentes graus de evolução, fazendo tudo parte dos desígnios da Providência para a harmonia do Universo.[1]
Estamos submetidos à Lei do Progresso, lei natural de Deus, havendo a necessidade de vivenciarmos as provas que nos proporcionam chegar à perfeição. Caso criasse os Espíritos perfeitos, Deus estaria também ferindo sua própria lei, o que não faz sentido. Toda teoria, doutrina filosófica ou religiosa que busque destruir a mínima parte dos atributos de Deus ou das Suas Leis, não podem ser aceitas racionalmente, sendo o sistema mais verdadeiro aquele que concorde melhor com a sabedoria e a bondade de Deus.
Certa vez, em 1864, perguntaram a Allan Kardec se Deus não poderia ter criado os espíritos perfeitos, para lhes poupar o mal e todas as suas funestas consequências. Para resolver a questão, o Codificador, com base nos ensinamentos já conhecidos até então e no seu raciocínio lógico, chegou a um entendimento adequado. Tal posicionamento encontra-se publicado na Revista Espírita, de março de 1864[2], podendo ser assim resumido.
Obviamente, Deus poderia ter criado todos os Espíritos puros e perfeitos, mas se assim não o fez foi porque entendeu mais útil e acertado fazer de outro modo e, conquanto para nós seja, às vezes, difícil compreender os desígnios divinos, precisamos reconhecer ser Deus infinito em suas perfeições e virtudes, logo foi a decisão mais acertada.
Sobre a Terra o homem é ainda como uma criança, com uma visão estreita de muitas coisas, pois só vê o presente, não podendo julgar da utilidade de certas coisas, devendo inclinar-se diante do que está bem acima de sua capacidade. Entretanto, Deus permitiu ao homem ter inteligência para se guiar, sendo correto procurar compreender, estudar, mas sempre com humildade diante do limite que não pode transpor.
Deus, sendo todo amor e bondade, não criou o mal para contrabalancear o bem. Caso tivesse feito do mal uma lei necessária, teria enfraquecido voluntariamente o poder do bem. Na verdade, estabeleceu leis justas e boas, que permitem ao homem que as observa ser plenamente feliz, contudo sua menor infração causa perturbação, vindo daí as vicissitudes verificadas.
Todo homem foi dotado de livre-arbítrio, podendo escolher o seu caminho, decidir entre o bem e o mal, sendo o responsável pelas consequências de seus atos. Pela destinação da Terra, não vemos senão os Espíritos dessa categoria, é dizer, mais imperfeitos que bons. Contudo, se nos fosse possível abarcar o conjunto dos mundos, veríamos que os Espíritos que permaneceram no bom caminho percorrem as diferentes fases de sua existência em condições bem diferentes, não sendo o mal geral e, muito menos, indispensável ao homem.
Como dito no início da pergunta, existe uma lei geral que rege todos os seres da criação, animados e inanimados, que é a lei do progresso, estando os Espíritos a ela submetidos, de modo que sua exceção perturbaria a harmonia geral. Inclusive, Deus exemplifica sua lei no processo da infância, mostrando ser ele necessário para o melhor desenvolvimento do ser imortal. Todavia, é importante destacar que a lei do progresso não obriga o homem a passar pelo caminho do mal para chegar ao bem, ela os submete a passar pelo estado de inferioridades intelectual, pela infância espiritual.
Lembremos que todos os Espíritos foram criados simples e ignorantes, devendo adquirir por si mesmos e pela sua própria atividade a ciência e a experiência que não podem ter no início. Caso Deus os tivesse criado perfeitos, já os teria dotado, desde sempre, da universalidade dos conhecimentos, isentando-os de todo o trabalho intelectual, ter-lhes-ia tirado o esforço que os faz contribuir, como encarnados ou desencarnados, para aperfeiçoamento material dos mundos, atividade essa que não cabe mais aos Espíritos superiores, encarregados tão somente de dirigir o aperfeiçoamento moral.
Deste modo, verifica-se que pela sua própria inferioridade, os Espíritos tornam-se uma engrenagem essencial à obra geral da criação. De outro modo, criados infalíveis, é dizer, isentos da possibilidade de fazer mal, seriam fatalmente como máquinas bem montadas, cumprindo maquinalmente as obras de precisão. Aí então se questiona: onde estaria o livre-arbítrio e a independência? Submetendo os homens à lei do progresso, quis Deus que tivéssemos o mérito das conquistas e das obras, usufruindo a recompensa e a felicidade de termos, nós mesmos, alcançado tal posição.
Por oportuno, menciona-se as palavras de Kardec que, em nosso sentir, completam toda a análise acima transcrita, possibilitando-nos total compreensão da questão. Diz o Codificador:
Sem a lei universal do progresso aplicada a todos os seres, deveria haver uma ordem de coisas completamente diferente a ser estabelecida. Sem dúvida, Deus tinha essa possibilidade, mas por que não o fez? Teria sido melhor de outro modo? Assim, ter-se-ia enganado! Ora, se Deus pôde enganar-se, é que ele não é perfeito, e se não é perfeito, não é Deus. Desde que não se pode concebê-lo sem a perfeição infinita, há que concluir-se que o que ele fez é o melhor. Se ainda não estamos aptos a compreender os seus motivos, certamente podê-lo-emos mais tarde, num estado mais adiantado. [3]
Reconheçamos, por fim, que tudo no universo é regido por leis harmônicas, cuja sabedoria e admirável previdência confundem o nosso entendimento, mas a destinação final de todos é a mesma, a perfeição relativa, sendo esta trajetória livre e pessoal. Pretendermos que Deus tivesse regulado o mundo de outra maneira, significa dizer que, em seu lugar, teríamos feito melhor, o que é sinal, ainda, de nosso orgulho e ingratidão ao Pai celestial.
Por fim, tenhamos em mente que muitos espíritos não precisam passar pelo mal em seu desenvolvimento, progridem passo a passo e sempre acompanhando a evolução do planeta onde nasceram em suas primeiras vidas, fazendo as melhores escolhas. Que possamos nós, a cada dia, procurar seguir as leis de Deus para que, mais rapidamente, alcancemos a felicidade.
[1] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 93 ed. Brasília: FEB. 2013. Q. 119. p. 99.
[2] REVISTA Espírita. 1864. Março. Da perfeição dos seres criados. Disponível em: <https://bit.ly/2KkoHap>. Acesso em: 19 jul. 2018.
[3] REVISTA Espírita. 1864. Março. Disponível em: <https://bit.ly/2KkoHap>. Acesso em: 19 jul. 2018.