Contemplando o atual panorama da civilização, não se pode ocultar dos olhos atentos o choque de gerações, onde o antigo insiste na sobrevivência e o ultramoderno exige espaços cada vez mais dilatados. Incontestável reconhecer os avanços tecnológicos, a supremacia da máquina, favorecendo a coletividade com comodidades inimagináveis há pouco mais de um século. Entretanto, nessa babel de chips e placas mãe encontramos uma mole humana sob transtornos os mais variados, desafiando a ciência médica e impondo inquietação social crescente.
Ao tempo que percebemos um dilatado interesse em desvendar os segredos ocultos da matéria, na sua intimidade profunda, as incógnitas humanas no campo dos relacionamentos interpessoais, da administração da solidão, da carência de afeto que atinge incontáveis indivíduos, localizamos um quisto de conflito e patogenia emocional, que desestrutura muitos e ameaça as notáveis conquistas desses dias de ufanias do pensamento.
Inúmeros flagelos que ceifaram milhões de existências no pretérito distante ou próximo foram varridos do planeta pela higiene e medicina sanitária, que conseguiu banir a superstição do campo científico, se impondo com suas técnicas e uma lógica incontestável. Contudo, superado um ou mais desafios, os micróbios que a assepsia controlou e a penicilina de Fleming derrotou ressurgiram com outras expressões, ora atormentando milhões de vidas no campo da depressão e das agonias sem causa bacteriológica.
Onde localizar vacinas para os solitários, anestesia para os agônicos, serenidade para a ansiedade mórbida e coragem diante do desalento?
Como desalgemar milhões de prisioneiros da fantasia e da crença cega?
De que forma orientar consciências embotadas ou mutiladas por séculos de lavagem cerebral no terreno delicado do fanatismo e da intolerância?
Não se desconhecerá que avançamos muito nas teorias sociais, econômicas e políticas, buscando pacificar no seio da sociedade interesses tão heterogêneos, onde grupos ainda se digladiam abertamente, esgrimindo floretes de ódio e sabres de agressividade, rasgando o frágil tecido social.
Por mais que o Estado dilate sua capilaridade no atendimento das necessidades básicas, como saúde e educação, segurança e moradia, os clamores se multiplicam, incontroláveis, exigindo criatividade e crescente investimento.
Sem moradia, as ruas enxameiam de maltrapilhos e abandonados, os hospitais lotam de enfermos diversos e a justiça não consegue dar conta da criminalidade crescente. Entre as quatro paredes do lar, as incertezas não são menores.
Educação de qualidade para uma geração que raciocina no sistema de terabytes.
Alimento no campo da alma, que atenda a demanda de insatisfeitos com a vida, oscilando entre a sanidade e a loucura, quais bombas ambulantes, prestes a explodir.
Sob amarguras de difícil catalogação, síndromes variadas e de abordagem complexa, estamos todos num coletivo chamado Terra, viajando na direção do imprevisível.
Vozes autorizadas, mas pessimistas, dão conta de que estamos no limiar da história. Atingimos o ápice e agora é descida vertiginosa, em direção ao abismo. Outros, proclamam a era de aquário, prenhe de oportunidades e renovação.
Muitos, optam pelo silêncio oportunista, se postando de atalaia, à espreita de ganhos sem esforço.
O mundo foi, está sendo e por muitos séculos ainda será esse cenário de contrastes, enquanto não houver investimento no conhecimento de si mesmo.
A viagem para dentro é impostergável. Quanto mais adiada, maior soma de desassossego provoca.
A moderna psicologia busca equacionar esse complexo viajante terrestre, sedento de glórias e ufanias externas, desorientado por dentro.
Rico de cifrões, miserável de emoções superiores.
Nababo nos prazeres da carne, permanece faminto de afeto e infantilizado no comportamento.
Senhor do cálculo e da geometria, é um analfabeto das lições simples da vida.
Ergue o arranha céu, constrói o submarino nuclear e coloca em órbita os engenhos de ótica espacial mais sofisticados da história.
Cá embaixo, deita sob drogas anestesiantes para conciliar o sono, frequenta templos religiosos sem acrisolar a fé raciocinada e elimina o outro à distância por drones, agora assaltado pelo remorso destruidor.
Sorri, quando desejaria chorar.
Cuida do corpo como se fosse nele viver eternamente, ocultando de todos o pavor da morte que se avizinha.
Tempos paradoxais!
Se tens alguns gramas de fé lúcida, és um rei em meio a cativos da ilusão. Se sabes de tua destinação futura além do sepulcro, possuis um tesouro em tua alma.
Se o Cristo já foi descrucificado em teu mundo íntimo, já não és simpatizante ou admirador do homem de Nazaré.
És discípulo, servidor da nobre causa, chamado por Ele a esculpir na Terra em transe um novo modelo de conduta, que começa no pensamento digno, se espalha na conduta reta e se corporifica na vivência honrada, vazando pelo verbo otimista e confiante.
O Mestre não espera de ti espetáculos de grandeza ou atitudes de herói. Sê tu mesmo, estendendo mãos aos caídos e ministrando algum conselho nobre aos perdidos da estrada comum.
Por muito amar, Seus discípulos serão identificados no mundo.
Marta
Salvador, 04.05.2022