Em chegando o final de ano, muitos corações são tomados pelo júbilo desses dias festivos, adotando postura de renovação e mudanças.
A começar pelo externo, que parece ser sempre mais fácil.
Paredes do lar são caiadas, calçadas são refeitas, muros escorados, novos vegetais são plantados, móveis adquiridos nessas ofertas e saldão de última hora.
Eletroeletrônicos de última geração são adquiridos para deleite do comprador e alegria do vendedor.
Utensílios de cozinha, cama, mesa e banho chegam em muitos lares como permuta de peças antigas, que passam a segundo plano ou são doadas a pessoas próximas ou instituições beneficentes.
Um consumismo sem freio assalta muitos indivíduos, os levando a assumir no empenho do dinheiro de plástico dívidas que serão dores de cabeça no início do ano e nos meses futuros.
O clima convida ao abastecimento da despensa, da geladeira e dos guarda-roupas.
Entretanto, se tanta volúpia submete o bolso e a carteira a tamanha hemorragia de recursos, porque as mudanças internas são deixadas de lado, como se não representassem moeda substancial de uma vida mais saudável?
E o réveillon desfila como um festival de promessas públicas ou íntimas, onde o ser se compromete, já sabendo que não vai cumprir ou buscará sabotar as próprias decisões.
A dieta que sempre fica pra próxima semana.
A academia que é paga, mas nunca frequentada.
A alteração de hábitos alimentares ou comunhão com amigos na caminhada cedo, que é hipotecada, mas raramente o candidato às trilhas acorda com disposição de arrancar o corpo dos lençóis aquecidos.
Até aqui anotamos ligeiro panorama das questões afetas à corporalidade ou ao jogo das conveniências do cotidiano, sem análise mais profunda daqueles conteúdos que se fazem algozes da alma.
Um ressentimento nutrido durante doze meses, qual quisto nos tecidos sensíveis dos sentimentos.
Uma mágoa com alguém da parentela, a respirar o mesmo ar das quatro paredes, onde não conseguimos disfarçar o mal estar que a pessoa nos provoca.
O rompimento abrupto daquele romance em condições que nos deixaram vulneráveis até hoje, onde a ferida emocional insiste em não cicatrizar-se.
A frustração por um projeto que, à semelhança de um avião, correu, correu na pista e não decolou, retornando ao hangar das possibilidades.
A enfermidade que neutralizou sonhos, mutilou avanços e ora envia sinais de recidiva, inquietando o coração.
O vazio existencial que parece um zumbi em nossa intimidade, não obstante uma casa cheia de objetos de valor, que não conseguem nos dar um sentido para viver.
A depressão que ronda os passos, como um inimigo de atalaia.
A ansiedade, que parece se inflamar nesse período de final de ano, onde quase todo mundo quer viver as emoções da hora como se elas fossem as últimas do relógio.
Sim, se para alguns o período natalino e final de ano são motivos de reflexões e ajustes no ritmo da vida, para muita, mas muita gente mesmo, é mais um ingrediente indigesto na ceia das tumultuadas existências.
Agrega ansiedade.
Aumenta expectativas.
Revolve velhos arquivos que gostaríamos que evaporassem por si mesmos.
Agitam as águas cristalinas, trazendo à tona a lama indesejável.
Não foi o tempo que criou as datas. O calendário pendurado na parede é uma invenção humana para atender nossas necessidades de delimitar o ontem, o hoje e o amanhã.
Daqui a poucos dias, ano novo.
Desafios não enfrentados viram monstros na intimidade de muita gente.
Decisões indefinidamente adiadas, problemas mais complicados.
Fuga de si mesmo, e para onde o foragido corra, estará sempre consigo.
Deita com seus fantasmas e acorda com seus espectros.
Ignora os avisos da vida, mas não foge de receber a fatura pelos excessos.
Poderia. Deveria ser diferente. E ainda dá tempo.
O mergulho do Celeste Menino nas vestimentas grosseiras veio nos apontar um caminho de esperança.
Tudo pode renascer, se quisermos e se trabalharmos.
Um nascimento numa manjedoura improvisada foi a mais eloquente mensagem de que Deus se valeu para nos inocular confiança no porvir.
Não te seja tormento íntimo esses dias de azáfama e correria.
Se outros estão de fórmula um, em alta velocidade, sê tu a serenidade que caminha nas veredas do mundo, anotando o casulo que oculta a falena deslumbrante, o ninho onde a ave aquece seus ovos e a colmeia, onde a abelha operosa fabrica o mel.
Descansa tuas agonias na doce suave chegada D'Ele ao teu mundo interior.
Enquanto o bom velhinho apenas transporta coisas perecíveis, Ele, que esteve contigo a cada hora, te estende mãos luminosas e te acolhe a cabeça angustiada, o corpo fatigado e os olhos vermelhos de chorar.
Ele não veio para doutos e sábios, entendidos e palavrosos. Ele veio buscar e orientar as ovelhas perdidas da casa de Israel, lhes outorgando, outra vez, vida, e vida em abundância.
Exuma, nesse momento propício, aquele entulho que te tem machucado a sensibilidade. Lança no rio da vida a madeira podre de tuas evocações tristes.
Em crise, ora.
Tomado por pensamentos doentios, lê alguma página refazente.
Abatido pela inércia, visita alguém em penúria e sê o anjo da misericórdia junto aos famintos.
Ouve alguém em opressão emocional e doa uma palavra gentil.
Pode estar fora de moda, mas escreve um cartão de Natal para três pessoas de tua roda de amigos e surpreende eles com tua lembrança fraterna.
Quem oferta rosas, se perfuma primeiro.
Quem aciona o interruptor, faz claridade para si próprio.
Seja tu a mensagem viva da renovação. O começo vai custar algum sacrifício, mas no final vai valer a pena.
Da vida maior, Jesus te acompanha os passos nas trilhas do mundo.
Marta
Salvador, 05.12.2022