Em anotando as deficiências do mundo, muita gente aguarda que heróis de capa preta ou dotados de poderes mágicos restaurem a credibilidade perdida e a ética combalida. A varinha de condão dos contos antigos ainda reside na imaginação de alguns sonhadores.
Quem sabe o super-homem ou a mulher-maravilha não surjam de uma hora para outra, removendo pessoas tortas do convívio social, impregnando a comunidade de esperanças outra vez?
Ficou claro na história das nações que sempre que surgia um período de turbulência ou conflitos, a sociedade se via refém de uma liderança que emergia do proletariado, um revolucionário do campo ou da vida urbana, a tomar a clava da justiça e defender os oprimidos e injustiçados. Não raro, a revolução tomava de assalto o poder de reis e príncipes, os destronando com violência, fazendo com que esses heróis populares chegassem ao poder, instalando nova ditadura, muito mais cruel que a anterior.
O herói virava algoz de quem se propunha defender.
O remédio não fechava a ferida, infeccionando-a mais ainda.
Tudo isso derivava do delírio pelo poder, que sempre assinalou a marcha de homens e mulheres pelos caminhos da convivência. Desde tribos primitivas até às modernas democracias, temos em cada uma delas as lutas de classes, os pugilatos dos entrechoques ideológicos, ortodoxos e reacionários, modernos e conservadores.
Engalfinham-se pelo mando e pelas prerrogativas de luxo e poder temporal, em muitas circunstâncias dizimando vidas para que não ofusquem suas fugidias conquistas.
Quase sempre o herói está marcado por grandes poderes, vida solitária e procedência alienígena. Tem o que outros não podem ter.
Raramente se observa o herói ou heroína por um prisma de racionalidade, o enquadrando em atividades do cotidiano dos quais o olhar comum não anota o heroísmo e a abnegação.
Onde estão as estátuas em honra de enfermeiros e médicos, de ambos os sexos, que se desgastaram no auge da pandemia, socorrendo os aflitos e atingidos pelo vírus cruel?
Onde estão as medalhas para cingir o peito de responsáveis pela manutenção da luz elétrica e do abastecimento de água nas residências de grandes cidades?
O controlador de voo, que assegura não haver tragédias no ar, orientando pilotos de gigantes aéreos a pousos e decolagens em perfeita harmonia.
O visitador sanitário, que vai de residência em residência, buscando extinguir os focos de mosquitos transmissores de enfermidades dilaceradoras.
O professor ou a professora da cidadezinha pequena, esquecida no mapa, que gastou longos anos de sua vida, alfabetizando gerações de indivíduos, os arrancando da ignorância e da sombra da incultura.
Heróis anônimos.
Gigantes ignorados.
Serviram na retaguarda e quando atingem a idade provecta, são rapidamente descartados como imprestáveis ou inservíveis.
Observa-se em plenos dias da modernidade o compulsório internamento de pais pelos filhos adultos em sítios de convivência da terceira idade, atendendo interesses de os afastar da família porque causam mal estar por serem inconvenientes, portadores de enfermidades degenerativas ou simplesmente atingiram alto grau de senilidade.
O herói da infância ou da adolescência agora é um peso difícil de carregar. Sua capa não permite mais voar. Seus dedos trêmulos não produzem mais faíscas destruidoras de hordas de bandidos e facínoras.
Até que um dia eles sucumbem ao ostracismo, caem na mudez completa e não conseguem mais expressar desejos e sonhos.
De olhar vago, assistem o desfile das horas, esperando o que nunca vai chegar.
Fala-se muito na geração descartável. Comenta-se, à luz da sociologia, a fragilidade dos relacionamentos interpessoais, que se fizeram aquosos em excesso.
Convívios sem aprofundamento.
Relacionamentos tóxicos.
Um maniqueísmo duro, rígido, onde o mal afronta o bem, a treva zomba da claridade, a doença gargalha da saúde debilitada e a opulência finge não enxergar a miséria chocante.
Os heróis estão sucumbindo de overdose. Os bandidos são ovacionados por multidões em delírio e êxtase.
A impunidade campeia e a honra delira de febre.
Heróis, heroínas...
Estão nos gibis e mangás, revistas em quadrinhos e telas de vistosos cinemas.
Na vida real, temos quem apenas cumpre seu dever e caminha despercebido. Auxilia e não reclama reconhecimento.
Serve e ignora retribuição.
Colabora e depois se perde na multidão.
Silencia no meio da balbúrdia. Ora nos instantes de crise. Sugere alternativas não violentas e dispensa capas e cavernas escuras, veículos mágicos ou poderes sobrenaturais.
Existem homens grandes e mulheres grandes também. Fazem sombra quando estão de costas para o sol. Busca-se grandes homens e mulheres. Estes, são escassos, não estão correndo atrás de medalhas e lauréis, títulos e honrarias passageiras.
Uma flor ou um sorriso, uma lágrima ou um gesto de ternura são suficientes para os abastecer de ânimo e otimismo. Chamam-se de pais e mães, avós ou tios, amigos e familiares, podem ser do país ou estrangeiros. Isso pouco importa.
Segundo a definição dada por Jesus, seus discípulos seriam reconhecidos por muito se amarem.
Dá licença! Alguém viu um deles hoje?
Marta
Salvador, 08.12.2022
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