Dentre as admiráveis passagens da vida de Jesus, destaca-se aquela em que, procurado por algumas crianças, que eram trazidas por seus pais ao toque luminoso do Divino Amigo, os discípulos, tomados de incômodo e mal-estar pela alacridade da meninada , tentaram impedir esse acesso, os repreendendo. Jesus, porém, os vendo, chamou-os para junto de si, determinou ao colegiado, conforme anotaria Lucas, no seu capítulo 18, versos 15 e 16: "deixai vir a mim os pequeninos e não os embaraceis, porque dos tais é o Reino de Deus! Em verdade, vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança de maneira alguma entrará nele".
A ingenuidade, apreciando essa passagem, afirmará que o reino celestial é uma creche. Outros, prisioneiros da letra que mata, afirmarão que somente as crianças, isentas de contaminação moral, serão salvas. E alguns se lastrearão na aludida passagem para se consolidarem na infantilidade dos gestos e das atitudes, fugindo da responsabilidade que surge como derivado natural da maturidade.
Inegável reconhecer que até os seres irracionais passam pela fase infantil, onde as brincadeiras com os demais membros da ninhada consolidam laços de proteção, e observando como os adultos se comportam assimilam, de maneira rudimentar, as técnicas de abate de presas e defesa de território. Depois de algum tempo, variando de espécie para espécie, as mães entregam esses filhos à própria sorte, onde deverão enfrentar, sozinhos ou em alcatéias ou manadas, os riscos da savana e o assédio de predadores.
Já entre os humanos, temos o mais longo período de infância dentre os animais superiores, tempo esse fixado pela Sabedoria Divina para que o Espírito repouse de suas fadigas evolutivas e, sob amparo da família, entesoure valores para consolidação de seu patrimônio moral e intelectual, com vistas ao porvir incerto.
O amparo dos pais afasta adversários cruéis. Os cuidados garantem o desembarque na adolescência e logo em seguida na mocidade. A orientação e os exemplos dos membros próximos do clã ofertam rico material vivencial, oportunizando recomeço de tarefas em bases mais consistentes.
Mas chega sempre o dia em que a ave que somos deve deixar o ninho, buscando singrar os céus de nossa própria experiência, enfrentando as rajadas de vento, o granizo e a chuva forte, fortalecendo asas para os grandes voos.
Nem sempre a família estará fisicamente por perto. Pais envelhecidos e cansados de guerra estarão no crepúsculo das próprias existências, fragilizados e vulneráveis, agora suplicando ajuda para a rude travessia da velhice, muitos entregues ao desamparo e ao abandono criminoso de filhos inconscientes.
Ante Jesus, todas as quadras da vida são bem-vindas! O Mestre, na inesquecível lição, igualmente anotada por Mateus e João Marcos, não se ateve ao aspecto da infância física, passageira e breve como qualquer estação da vida. O Excelso Orientador referiu-se, valendo-se da ocasião, à pureza de alma que deve viger no íntimo de cada um em relação aos acontecimentos da vida. Não permitir que a nossa criança interior, que se manifesta na simplicidade e na limpidez de sentimentos, seja ceifada ou aniquilada por esse adulto estressado e violento que muitos se tornam, qual vinho que opta por se tornar intragável vinhaça.
Ter consciência de que os anos e as ocorrências naturais do caminho devem ser aproveitadas como lições e cursos para bem viver, insculpindo em nossa intimidade os lastros da experiência e da sabedoria, ferramentas com as quais contaremos nas horas de solidão ou nos tempos dos testemunhos.
Guardar consigo o sorriso da criança, não afivelando ao rosto a pesada máscara de uma Colombina arrependida ou de um Pierrot atormentado.
Suavizar, com as expressões do bom senso, as duras lições que as amarguras do cotidiano nos impõe, salvaguardando nossa paz de salteadores da harmonia e meliantes da felicidade.
Cada vez mais mergulhados em tempos difíceis e convivência áspera com terceiros enfezados e tóxicos, igualmente temos o dever de vigiar nossas nascentes íntimas, as preservando do lodo da maldade e da lama da podridão moral, a tisnar muitas águas de nosso tempo. E quando o Infante Celeste se faz presente no caminho dessas "crianças espirituais", muitos pais os levam para o toque de despertamento, o convívio saudável com Aquele que nunca perdeu a sensibilidade para com as angústias humanas, sempre que possível, se valendo de breves encontros para resgatar em nós o menino perdido ou a menina injuriada.
Nenhum convite para estacionar na infantilidade de atitudes. Referendo algum ao ser que vive "tirando o braço da seringa", para não assumir as próprias atitudes. Anuência alguma ao Espírito que se escora em terceiros, com medo de enfrentar seus demônios internos.
As atitudes de Jesus sempre foram no sentido pedagógico de despertar o ser para suas responsabilidades evolutivas. Assunção das consequências de seus atos.
Riso no acerto e lágrima no equívoco, mas acima de tudo, o desejo de acertar, prosseguir tentando até consolidar a maturidade, que esplende o adulto, mas não elimina o petiz que sorri e solta bolas de sabão no coreto da praça.
Estamos todos na Terra em aprendizado, e no intervalo das três primeiras aulas, o educandário nos libera para o recreio, momento breve onde damos vazão à alegria, ao folguedo, o convívio sem compromissos tiranizantes, mas aluno algum desconhece que o intervalo tem prazo para terminar e logo em seguida adentramos novamente a sala de aula, onde Ele pontifica na cátedra admirável de ensinar como viver, desabrochando o adulto para os grandes embates existenciais, sem permitir sufocar a criança que ainda busca o colo de mãe nas horas de crise ou desamparo.
Não te esqueças do encontro com Ele quando surja a ocasião própria. Em sendo por Ele tocado, refaz teu menino traumatizado, resgata tua menina violada e avança para os luminosos dias do porvir.
Sob a custódia do Cristo, jamais envelhecerás nos teus sonhos e ideais.
Vinde a mim e não os impeçais...
Marta
Salvador, 16.12.2022
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