Fruindo de uma organização física assinalada pela saúde robusta, raramente o ser cogita que aquele pode ser seu último dia na Terra. Fazendo inveja aos moribundos, produzindo do amanhecer ao crepúsculo, nem sempre o aprendiz matriculado na escola da vida se dispõe a fazer pausas para refletir na brevidade da conjuntura orgânica em que se manifesta.
Quase sempre tomado de empáfia e presunção, antevê uma larga existência corporal, como se blindado estivesse contra as ocorrências inditosas.
Ignora que o veículo no qual se movimenta pode apresentar defeito súbito ou se envolver no acidente com vítimas fatais. A viagem aérea, cujo comboio despenca das alturas, não poupando tripulantes e passageiros. Os males súbitos ou as demoradas enfermidades, a drenarem lentamente o fluido vital, desidratando a armadura de ossos e cartilagens no qual deambula na corporalidade passageira.
Só muito raramente o ser estuga os próprios passos para cogitar dessa fragilidade que o reveste. Tem optado mais, conforme as doutrinas materialistas do mundo, em se fixar no transitório, na aparência, agarrando-se em quase desespero ao vasilhame de carne, nele enxergando o castelo onde oculta seus medos e suas incertezas.
Em mais de dois milênios de Cristianismo, ainda impera o poderio do homem velho, assaltado pelas inquietações da experiência evolutiva, que insiste em desconsiderar.
Tomasse para si as lições de vida exaradas pela própria natureza e diferente seria sua conduta diante dos percalços existenciais.
A lagarta que vira crisálida, rumando para a falena de rara beleza.
O ovo, que se destrói no ninho, libertando a harpia gigante.
A semente, confiada à cova escura, ali morrendo para projetar o vegetal garboso do amanhã.
Essas analogias, se seriamente meditadas, ofertariam a certeza de que a vida não começa no berço nem se esfacela no sepulcro, sendo apenas portais por onde o ser imortal se adentra pelas fraldas e se ausenta pelo esquife, prosseguindo suas intermináveis lutas pelo aprimoramento que nunca cessa.
O mundo seria uma escola.
A família, uma sala de aula.
As decepções, os desencantos, nada mais do que lições para acrisolamento da sensatez e extinção gradual da ilusão.
Numa vilegiatura que se encontra profundamente assinalada pela hipocrisia e pelo fingimento, o ser acabou por se acostumar aos trapos de que se reveste, menosprezando a essência que é. Fez do palco da Terra seu teatro de horrores e baile de fantasia, onde as pesadas máscaras tecidas pela ignorância religiosa e pelos comportamentos indignos geraram uma sociedade mais ou menos, a se apoiar na falácia e no chavascal das construções fantasiosas.
Buscasse conhecer-se a si mesmo e diferente seria sua trajetória no mundo.
Ofertasse ao corpo os cuidados mínimos e priorizasse a vida futura, teria seus tolos receios diluídos ao clarão da verdade. Investisse mais na educação moral, tanto quanto se ufana da cultura acadêmica, e em breve riscaria de seu mundo íntimo as dúvidas quanto à sobrevivência do ser após a disjunção cadavérica.
Ditoso por possuir uma fé racional e lúcida, manteria com seus antepassados um intercâmbio sem jaça e sem superstições, tão ao agrado de mentes infantis e cristalizadas no passado.
Teria certezas e não crenças.
Acrisolaria religiosidade e não religiões sectárias, ainda veículos de manipulação ideológica e teologal das massas ignorantes.
Liberto de peias e pelourinhos culturais, decifraria os enigmas do ser, do destino e das dores que ainda vergastam o dorso de uma sociedade descrente e materialista.
Hoje pode ser teu último dia no corpo. Pensaste nisto?
Cogitando que estejas em tuas derradeiras vinte e quatro horas no estojo de cartilagens e sangue, que pensas fazer de tuas forças?
Tomado de assalto por uma informação desse quilate, darás amplidão aos teus instintos, sorvendo a taça de vinho num só gole, ou buscarias o silêncio das graves meditações?
Que representou tua vida até aqui?
Arrastas contigo mágoa de alguém? Deixa o coração de um ser querido farpeado por teus atos insanos?
Serás lembrado com carinho e ternura ou ouvirás tão somente as gargalhadas de teus rivais, airosos por teu desaparecimento súbito?
Qualquer que seja o próximo movimento, lembra-te da prece ardente e sincera. Evoca o Homem de Nazaré, que triunfou sobre a morte, ressurgindo ao frescor de um jardim no terceiro dia.
Sua mensagem consoladora.
Suas parábolas de despertamento das consciências embotadas.
Seu chamado, como bom pastor, das ovelhas tresmalhadas da casa de Israel, as reunindo novamente na segurança de Seu cajado de misericórdia e amor.
Se partires, conserva teus melhores ideais, forra-te com teus atos nobres e repousa.
Em seguida à madrugada, novo dia resplandecerá em teu caminho. E se aprouver à Divindade te conservar no condomínio dos tecidos orgânicos, acolhe a bênção como quem suplicou e foi atendido em moratória breve, a ser utilizada para dissipação de equívocos, acerto com credores e acrisolamento de asas, que te façam librar acima das inquietantes paisagens do mundo, te descerrando, não muito distante, um admirável mundo novo, que te aguarda, vibrante e rico de novos labores, nas trilhas do amanhã sem fim.
Leon Denis e Marta
Juazeiro, 19.10.2022