À primeira vista, o ambiente religioso parece-nos assegurar uma bolha de segurança diante do caos em que se apresenta a atual sociedade. Pessoas que comungam o mesmo ideal, seguem a mesma cartilha, sem dúvida, nos ofertam um clima de segurança e acolhimento nem sempre fácil de encontrar nos tumultuados dias correntes.
Entretanto, para surpresa nossa, assim que nos ajustamos ao grupo escolhido, vamos percebendo que existem os que acolhem e os que se mostram refratários ao nosso surgimento.
Alguns temem perder prestígio e destaque no círculo de confiança em que se movimentam e nossa chegada representa alguma ameaça nesse sentido.
Ao contrário do ambiente de trabalho, onde a hierarquia predomina e as tarefas estão definidas e são executadas por servidores qualificados para o setor próprio de cada um, geralmente na filantropia cada pessoa elege campo afim, optando por estar junto daqueles que se mostrem mais amistosos.
Atividades não remuneradas possuem outro tônus vibratório, reclamando do voluntário certas aptidões que as diferenciam dos labores de sustentação da vida material.
Mas em qualquer campo onde ocorra a presença humana, aí estarão seus valores, ora pró-ativos, ora reativos.
Ainda predomina muito na natureza humana o apego àquilo que executa, e quando surge um novo servidor, nem sempre sua presença se constitui num júbilo para todos. No íntimo de alguns, irrompe a ideia de que será substituído em breve, de que já não desempenha a contento a tarefa abraçada e se o novo apresenta talentos de destaque, em alguns casos se firma oculta oposição à sua presença.
Frieza no trato.
Sorrisos bem articulados.
Elogios secos.
E, sem perceber, o servidor invejoso vai diminuindo o entusiasmo por aquilo que antes lhe constituia êmulo e prazer, ou simplesmente adota postura de confronto, buscando esvaziar a importância do estrangeiro.
São situações muito mais comuns do que possamos imaginar, ocorrendo em diversos setores da casa religiosa, reflexo ainda da nossa inferioridade moral e das nossas paixões, como se a tarefa escolhida livremente fosse interditada àqueles que chegaram depois.
O cooperativismo pede simplicidade e aceitação natural de que em algum momento seremos substituídos por outros tarefeiros. Quem chega também deseja ajudar, iluminando-se nos labores que buscam soerguer a dignidade da pessoa humana. Alguns esquecem que a tarefa é do Cristo, que convida voluntários para socorrer caídos e fragilizados, perdidos e desorientados da estrada comum.
Cada um vai localizando na vasta seara do bem um lugar vazio, uma lacuna existente, onde ali doa suas energias em favor de algum ideal iluminativo, e deveria alimentar a lucidez de que a gleba é vastíssima, havendo oportunidade para todos.
Ninguém fica eternizado na mesma tarefa. De tempos em tempos, as ocorrências do cotidiano impõem permutas, deslocamentos para setores mais desnutridos, novas áreas de serviço se abrem, reclamando mão-de-obra capacitada para aquela frente de luta e a inveja e o despeito são vérminas corrosivas do metal da boa vontade.
Pessoa alguma é tão competente que dispense o outro. Servidor algum, mesmo abrasado pelo ideal cristão, pode alegar que dará conta, sozinho, de uma seara que sempre esteve escassa de operários da luz. Seu fundador elegeu 12 amigos inicialmente. Depois, buscou os 70 e mais tarde convidou os 500 da Galiléia para os rudes labores da propagação da nova doutrina. Foi buscar, às portas de Damasco, o tresvariado doutor da lei e este, depois de situado pelo Cristo nas penosas tarefas de alimentar as primeiras comunidades cristãs, igualmente se valeu de inúmeros discípulos, que se espalharam pela Ásia antiga, semeando as boas novas.
Se presentemente estás em algum modesto sítio da tarefa redentora, acolhe com simpatia quem chega, desejoso de também servir. Pode ocultar um notável servidor da causa cristã, se revelando ao longo do tempo alguém possuidor de comovedora abnegação.
Não vem usurpar o que julgas teu posto ou tua área de influência, que em verdade não existe.
Somos todos mendigos de luz, buscando alguma atividade que nos arranque da inércia. Temos receio de nossas sombras íntimas e no trato com as trevas alheias conseguimos diluir alguma obscuridade em nosso próprio olhar.
Qualquer disputa nesta seara ainda evidencia ausência de evangelho nas atitudes e no pensar, reproduzindo o modelo materialista do mundo, onde o canibalismo e a concorrência campeiam arbitrárias, produzindo vencidos e vencedores.
Sê tu aquele que abraça quem chega, desejoso de algo fazer em favor da nova era. Orienta o novato, permutando com equilíbrio tua experiência de irmão mais velho. Estimula o acerto e corrige com brandura o erro.
E quando surja tua partida dos cenários das atividades com Jesus, possas seguir tranquilo, na certeza de que a seara não ficou desprovida de alguém para continuar distribuindo pão aos famintos e água aos sedentos, orientação aos perdidos e consolação aos desesperados.
Não falta serviço com Jesus.
Faltam servidores dedicados.
Em tempos de confronto, animosidade e intolerância, elege a mansuetude, o bom ânimo e a paciência no trato com teus amigos e amigas de caminhada comum. Amanhã, alguns deles poderão ser nossos instrutores nos cimos da vida maior.
Medita nisto.
Marta
Salvador, 21.11.2022