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Foto do escritorCasa de Jesus

Primavera de Marta - Mensagem do dia 22.12.2022



Quando decidi fazer-lhe uma ligeira visita, a saudade cantava sua patética sinfonia em minh'alma. Vários anos nos separavam e tínhamos perdido contato um com o outro.


Atravessei campos de lavandas, trigais maduros, hortas de verde repousante, pomares de fartura e sua imagem bailava em meu caleidoscópio interior. A carruagem rangia nas madeiras velhas e os corcéis não eram tão velozes como outrora.


Em um entardecer inesquecível, onde o poente se deitava, melancólico, por detrás da montanha altaneira, atingi seu pequenino burgo, que mais parecia um conto de fadas. Casinhas modestas, rosas por toda parte, papoulas desabrochando em vários jardins e uma brisa de final de tarde que inspirava nostalgia e poesia, à semelhança dos menestréis de Coimbra.


O veículo estacionou e dei-me pressa em buscar sua choça que eu conhecera alguns anos antes.


Tudo do mesmo jeito. Você é um incorrigível. Folhas secas na varanda, feno estocado para os animais, apetrechos de agricultura pendurados no telhado e algumas cordas de sisal balançando ao sabor do vento.


De coração pulsante, fiz a porta velha ranger nos gonzos e entrei. Os mesmos móveis, sua cítara num canto, a ânfora árabe que você adquiriu com aquele mouro, nosso velho amigo Mustafá.


Alguns manuscritos em sua mesa, onde você costumava rabiscar poesias ou ensaiava a composição de algum velho fado.


Tudo aquilo me fez as lágrimas saltarem dos olhos. Voltei em pensamento ao ontem longínquo. No veículo ligeiro da saudade, volvi aos dias de nossa infância.


Os alegres saraus com a mocidade de nosso tempo. Os passeios até a cachoeira próxima, onde o banho se casava com a alegria. Os poemas declamados, os pedaços de Os Lusíadas, de que nos valíamos de memória para ressuscitar Camões.


Sua cítara dolente, arrancando das cordas o toque que traduzia a música regional, profundamente romântica. As romãzeiras carregadas de frutos doces, que nossa turma consumia com avidez.


Flashes de nossas vidas, que a fita do tempo gravou no videotaipe da história.

Entre recordações e lágrimas, localizei o canto da sala, perto da janela, onde você costumava montar o presépio por ocasião do Natal.


Estava vazio.

Lembrei que desde a morte de sua mãe você perdera o encanto e o estímulo de colocar aquelas peças de barro num cenário que teimava em não se diluir de nossa memória. Dois porquinhos, uma vaquinha mimosa, um anjinho de asa quebrada e aquela manjedoura feita de juncos da beira do riacho. O resto, era capim que a gente recolhia dos campos e flores que o talento de sua mãe colocava.


Ela sempre foi devota de São Geraldo, padroeiro de Braga, a cidade distante.

Fiquei sentida em não ver o recanto onde Ele nascera montado, mas eu conhecia suas dores íntimas e compreendia o porquê do seu silêncio.


Ali me deixei ficar em divagações que me arrastaram ao pretérito. Nossa amizade, sonhos compartilhados, alegrias comuns. Crescêramos juntos, mas em algum momento tivemos que dizer adeus e cada um foi buscar seus sonhos em terras distantes. Voltar àquele cenário era resgatar, dentro de minha alma, algum elo perdido. O café quente que sua mãe servia, acompanhado de pão artesanal que ela mesma confeccionava com tanto amor. E o presépio, insisto nele, era devoção certa a cada final de ano.


Não sei de onde tirei tamanho atrevimento, mas movida por uma força desconhecida, abri o velho caixote das peças gastas e maquinalmente fui montando o cenário rústico onde o menino Jesus certamente nasceu em Belém.


Recordei dos famosos pastéis de lá.

Em poucos minutos, que me pareceram horas, o cenário franciscano estava montado como outrora. Fui à varanda e uns tufos de ervas secas e verdes criou em minhas mãos o cenário ecológico daquela noite mágica, onde o Messias repousava junto de Sua mãezinha, exausta.


Vagueei o olhar pela casa e me percebi muito feliz por reconstruir naquele cantinho o quadro que sua genitora adorava fazer em dezembro e desfazia em lágrimas no mês de janeiro.


Foi a única oblata que pude naquela visita ligeira deixar em seu lar.


Acolha como se fosse um cartão de Natal para fazer renascer a alegria em sua alma melancólica.


Para você, meu abraço.

Pra sua mãe, minha eterna lembrança e saudade.


Para Jesus, todo o meu amor e fidelidade.

Feliz Natal!

Como entrei, saí.

Dezoito horas. Momento do ângelus. Orei a Ave-Maria no alpendre e tomei o rumo das estrelas. Era quase Natal...


Marta

Salvador, 22.12.2022

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