Foi Jesus o pioneiro do culto do Evangelho no lar. Assim que caía o crepúsculo sobre Cafarnaum, os pescadores recolhiam seus barcos e redes, demandando a intimidade dos lares para refazimento das fadigas do dia. Nem sempre a pesca se mostrava promissora ou regressavam do imenso lago de água doce com os frutos dos arrastões, e quando as tentativas se mostravam infrutíferas, o retorno era melancólico e as incertezas pesavam no semblante de cada um. Neste cenário de uma beleza rústica e única, o Divino Amigo fazia pouso noturno habitual na casa de Simão Pedro, o filho de Bar Jonas, que igualmente fora pescador, legando ao filho, ora em plena maturidade, o mesmo ofício.
No alpendre da casa modesta, bem próximo das águas mansas, cada noite em que esteve ali hóspede se reuniam para análise e reflexões sobre algum aspecto em torno das pregações nas vilas próximas ou comentários sobre alguma ocorrência que se dera no curso do dia.
Cada noite, sob o lampejo de estrelas que lucilavam no infinito, Ele injetava esperança nos companheiros combalidos ou esclarecia algum ponto duvidoso dos Excelsos ensinos.
O grupo, por instinto, fazia um semicírculo em derredor do notável contador de histórias e um silêncio profundo permitia que Ele discorresse sobre o assunto da noite, não raro trazendo um ou outro apólogo, com que ilustrava suas narrativas, proporcionando a cada um a possibilidade de entendimento do sentido moral do assunto em pauta..
Houve noites em que a incerteza pairou sobre os semblantes, como a evidenciar que o colegiado estava inseguro sobre o triunfo da Boa Nova nos corações. As castas sacerdotais se movimentavam contrárias àquele conjunto de princípios que exaltavam o amor, propondo uma igualdade inadmissível numa Israel dominada pelo patriarcado. Moisés era a verdade incontestável e aquele Messias parecia desconhecer a situação política da raça, submetida ao talante do Império Romano. A asfixia financeira, a mordaça política e as tricas do farisaísmo dogmático e opressor eram garrotes que desencorajavam qualquer afronta aos princípios da Lei.
Ninguém possuía autoridade para se opor ao pensamento interpretado pelos doutores e sacerdotes do Sinédrio, sob pena de ser tachado de subversivo e de imediato anatematizado pelo colegiado, sofrendo duras penas.
Aquele grupo começava a incomodar pela liberdade de pensar e seu Mestre trazia um arejamento aos corações que arrebatava multidões. Seus sinais eram públicos e incontestáveis.
Cegos voltavam a enxergar.
Coxos eram libertos de membros raquíticos e paralisias que a medicina supersticiosa da época desenganava.
O Hansen, temida como sinal da ira divina sobre os pecados humanos, era por Ele afrontada e erradicada, permitindo que o "morto" ainda em vida retornasse ao convívio social para afronta da impotência da elite religiosa de então, mancomunada com interesses argentários criminosos e conchavos políticos que sempre prejudicavam os mais livres. O povo (Am Ha-aretz), também chamados de pessoas da terra, eram os espoliados e marginalizados, sofrendo todo tipo de privação, e com estes Ele dialogava com profunda alegria no olhar, sempre deixando um alento e um estímulo em quem D'Ele se acercava.
Em várias noites daquelas tertúlias não registradas pelos evangelistas, Ele pontuava que o Evangelho não estava no mundo para se submeter ao capricho de grupos ou se tornar ferramenta de dominação das massas. Vinha para inaugurar novo tempo em cada consciência, despertando a alma para a prática da fraternidade e da solidariedade. Estabeleceria um novo tempo na convivência entre corações distintos, não sem antes sofrer impiedoso combate dos interessados em não perder os transitórios privilégios mundanos, ignorantes da impermanência de tudo.
Cada discípulo seria uma vela acesa na noite escura da ignorância humana, dissipando com exemplos e renúncias as sombras do despotismo e da arrogância.
Que cada homem tocado pela mensagem da Boa Nova percebesse que seu maior adversário são suas imperfeições, credoras de iluminação e esclarecimentos no rumo da verdadeira libertação.
Dissipando dúvidas e aclarando pontos obscuros, o Embaixador de Deus fortalecia o grupo para os embates de cada dia, desenhando as lutas que persistirão no orbe terrestre, ainda dividido por ideologias que se combatem mutuamente, arrasando o solo fecundo por onde poderiam semear flores ao invés de espinhos.
Seus ecos ainda reverberam hoje nos tímpanos atentos. Seus ditos comovem multidões. Suas parábolas encantam pela simplicidade e profundidade de conteúdo.
Ele continua peregrinando pelas Betânias do mundo, na tentativa de arrancar os Lázaros que somos, reféns da morte moral, sepultados nas criptas de nossa pequenez espiritual.
Até quando persistirá esse quadro?
Cada um deve saber...
Marta e Amélia Rodrigues
Salvador, 28.03.2022