Ainda persiste entre muitos cristãos a ideia de que chegamos ao fim do mundo. Deus estaria, uma vez mais, profundamente arrependido com os rumos da criação e por isso decidido a pôr fim a essa incrédula, idólatra e perversa geração.
Meios? Não faltam à Divindade. Se os textos antigos, situados no velho testamento, dão conta do dilúvio universal, talvez agora o Senhor se utilize do fogo, elemento purificador, para varrer da face da Terra toda criação maligna, inaugurando um novo tempo. Nessa nova Jerusalém, o leão deitaria ao lado da corsa, a serpente perderia a peçonha diante do sapo e a raposa comungaria com os galináceos, sem oferecer qualquer risco à integridade destes.
O amor predominaria entre os seres. A paz substituiria a guerra. Os muros seriam desfeitos e a lei de Deus seria definitivamente implantada no coração da criatura humana.
Ninguém, em sã consciência, poderia contrariar ou se opor a semelhante projeto Divino, mas as interrogações se multiplicariam de maneira prodigiosa na fértil mente do ser fadado à razão.
Por que o Pai destruiria Sua criação? Se defeituosa, porque não consertá-la ao custo da educação moral?
Como lançar nas labaredas infernais milhões de indivíduos que não acessaram a escola por miséria absoluta ou não tiveram a bênção de um educandário próximo?
Como compreender a fúria divina sobre a casa planetária, se a problemática reside no habitante bípede que lhe domina a superfície, ainda incapaz de perceber a própria imortalidade?
De Jesus para cá, multiplicaram-se no mundo os liceus, as universidades, escrevemos milhões de livros e dilatamos as fronteiras do conhecimento para limites impensáveis no pretérito. Todo esse acervo seria tomado por inútil e todo esse progresso teria sido em vão?
Considerando que Jesus, ao ressurgir do túmulo no terceiro dia, nos confirmou a imortalidade como herança do Excelso Criador, por qual razão seríamos deslocados de maneira violenta do corpo para as instâncias do mundo espiritual, abandonando de maneira abrupta toda uma estrutura longamente montada, justamente voltada para nosso aperfeiçoamento intelecto-moral?
São interrogações que se multiplicam ao infinito, desafiando teólogos e exegetas, pensadores e filósofos, mas deve nos bastar para começo de raciocínio, por muito nos inquietar. Em presumíveis 4,5 bilhões de anos de existência, quantas oportunidades teve Deus de por um fim ao planeta das remissões e dos amores, das lutas e dos avanços, do poder e da miséria, onde até hoje nos engalfinhamos em lutas intermináveis por posse, que fica, por poder, que muda de mão, por orgulho, que a morte reduz a pó, por egoísmo feroz, que o túmulo recolhe e por presunção, que a humildade dissolve ao sopro da vida?
Se o Supremo Amor deixou a Terra intacta até aqui, ela teve e tem uma utilidade que nos escapa ao fragmentário entendimento.
Tem sido nosso berço amoroso e nosso túmulo silencioso.
De suas entranhas arrancamos a argila com que fizemos a palafita e a pedra do cimento com que erguemos arranha céus.
Plantamos e colhemos.
Suas ervas medicinais nos curaram as mazelas orgânicas.
Seus frutos maduros mataram nossa fome, seus rios e lagos nos arrancaram da sede e hoje em seu oceano de oxigênio deslocamos transportes de alta expressão.
Ó, Gaia sofrida, quanto te devemos em gratidão!
Desapiedados, temos envenenado seus córregos e contaminado suas nascentes. Sedentos de poder passageiro, temos ensanguentado seus campos nas guerras periódicas e erguido tributos a tiranos e generais, olvidando teus filósofos e pensadores, artistas e estetas.
Hoje, faltando alguns dias para o Natal, nós, os cristãos de tantos matizes, nos damos conta de que em algum momento do passado próximo, o Celeste Governador de tua evolução tomou veste corporal entre nós e veio em pessoa nos auxiliar na aquisição do amor, imbatível amor.
Das palhas de Belém ao martírio em Jerusalém, deixou sementes de esperança e alegria nas terras sáfaras do coração dos homens.
Nos competia cultivá-las em nome D'Ele.
Perdoa nossa incúria e nossa invigilância!
Ainda temos tempo para rever atitudes, perfumar os caminhos e ressignificar pensamentos. Ao toque do Natal, todo amor se dilata e todo perdão se amplia.
Deus guarda a Terra, Jesus a governa e para nós a vida prossegue.
Marta
Salvador, 16.12.2021